17/06/16 - Você tem fome de quê?

Mais do que se alimentar e se nutrir, consumir orgânicos é também uma postura política, ecológica, social e econômica, uma vez que se contribui para uma produção pequena, que é sustentável e preserva a natureza


Há muita coisa envolvida nos atos de comer e cozinhar. Para além das delícias que se pode preparar com os alimentos e de sua riqueza nutricional, há toda uma cadeia de valores que se deve levar em conta quando se decide por consumir esse ou outro item. São escolhas que se tornam verdadeiras ferramentas políticas, econômicas, sociais e ambientais para quem carrega essa consciência. Assim pensam as pessoas que consomem produtos orgânicos, alimentos de origem vegetal que em sua produção não levam agrotóxicos, fertilizantes e pesticidas químicos e de origem animal que não contêm antibióticos, hormônios ou drogas veterinárias.


“Nós estamos consumindo agrotóxicos há mais 60 anos, desde a chamada ‘revolução verde’”, afirma Márcia Cambraia Godoy, veterinária e especialista em biodinâmica, sobre a prática de disseminação de novas sementes na agricultura que permitiu um vasto aumento na produção agrícola a partir da década de 1960, por meio do uso intensivo de insumos industriais, mecanização e redução do custo de manejo.


“Qual lado você patrocina quando compra sua comida? Qual economia você quer movimentar? A das poderosas indústrias agrotóxicas, que poluem e contaminam alimentos, ou a do pequeno produtor, que é sustentável e preserva a natureza? Essa é a pergunta que temos que fazer diariamente. A ‘evolução verde veio para acabar com a fome do mundo, mas não foi isso que aconteceu. Temos que ter consciência e buscar alternativa, afinal, que país queremos reproduzir a Dinamarca, que acaba de anunciar que quer fazer de sua produção agrícola 100% orgânica, ou os Estados Unidos, que não tem um política de testar produtos químicos antes de entrar no mercado por causa do poderoso lobby da indústria química?”, indaga Márcia, que produz alimentos orgânicos há 24 anos em uma fazenda em Brumadinho e os comercializa no seu empório, o João Caipira, no Gutierrez.


Saber o que se está comendo e se interessar pelos impactos da alimentação na própria vida e no mundo é a chave, segundo ela, para buscar uma alimentação verdadeiramente saudável. Mas ainda há resistência, principalmente quanto ao preço. A especialista, porém, tem a resposta na ponta da língua: “Outro dia, perguntei para uma cliente qual foi o impacto econômico na vida dela depois que resolveu só consumir orgânico. Sabe o que ela me respondeu? Nenhum. Porque ela me disse que hoje gasta menos com farmácia e, no supermercado, não compra mais produtos industrializados”, conta.


Isso porque, quando se opta por consumir orgânicos, é preciso mudar a mentalidade. “Não se pode pegar uma receita e ir atrás de orgânicos para fazê-la. Não é assim que funciona, porque nem sempre se vai encontrar o que é preciso. Dependemos da sazonalidade e de vários outros aspectos que só quem conhece esse tipo de produção compreende”, orienta. Atualmente, com a gama enorme de produtos orgânicos à disposição – que não inclui apenas os de origem vegetal e animal, mas também cereais, laticínios, geleias, pães e biscoitos –, é possível ter uma vida quase que absolutamente orgânica. Para ela, o interessante é usar a criatividade, ver o que se tem na mão e criar um prato a partir dali. “Temos que sair do comodismo e nos abrir para novos sabores”, afirma a especialista, que criou os dois filhos, os gêmeos Maria Alice e Thomaz, 17, com orgânicos. “É claro que hoje, adolescentes, eles não consomem só orgânicos. Mas acho curioso quando ficam doentes, como eles querem comida de verdade porque sabem que a cura está nos alimentos”.


Mas como saber a legitimidade do produto orgânico? Hoje, o Brasil tem alguns selos orgânicos – como o IBD e o Orgânico Brasil). Eles estão presentes nos rótulos dos alimentos e garantem ao consumidor que os produtos são realmente livres de agrotóxicos. “Esses selos são muito relevantes no supermercado. Mas, nas feiras orgânicas ou na venda direta ao consumidor, o recomendado é criar uma relação, um laço com o produtor”, afirma Márcia, que pontua a importância de o consumidor se informar sobre como se produz orgânicos para estar preparado para fazer perguntas ao produtor. “‘Quanto produz? De onde vem a água? Como foi feita a colheita? Tem área de reserva perto da plantação?’ Essas são as perguntas a serem feitas. E, criado esse laço, ele pode até pedir para fazer uma visita à plantação. O que não podemos é delegar para quem está nos vendendo o poder absoluto. Munidos de informação, não vamos ser enganados”, diz.


O laço entre o consumidor e o produtor ou o pequeno comerciante é outro fator importante para movimentar essa economia. “Se a gente não comprar deles, eles fecham. E, mais uma vez, vem a pergunta: quem queremos patrocinar?”, questiona.


“Quase não entro em farmácia”


João, de 1 ano e sete meses, é a quarta geração de sua família a consumir orgânicos. Tudo começou com sua avó, Adriana Corrêa, 58, que há 18 anos resolveu mudar a alimentação. “Meus filhos eram pequenos, e minha mãe logo aderiu também”, diz Adriana, que afirma sentir na saúde e na disposição os efeitos da alimentação orgânica. “Quase não entro em farmácia”, diz a avó de João, que consome carnes, frango e peixes orgânicos.


Para Carlos Ruas, 32, além da saúde, o que o levou a consumir orgânicos foi a questão política. “É muito bom saber que você está ajudando a movimentar esse tipo de economia”, afirma ele, que adora cozinhar e criar novas receitas. “Quero fazer um sorvete 100% orgânico. Não sei se vou conseguir, mas gosto de fazer experiências”, diz.

Andrea Vieira procurou orgânicos após uma recomendação médica. Seu filho de 17 anos sofre de síndrome de Asperger e é muito suscetível a alergias e intolerância a determinados alimentos. “Ele consome orgânicos há cinco anos, as mudanças são lentas, mas sinto que agora as alergias não o afetam tanto”, diz.


Márcia Cambraia Godoy conta que muitos começam a aderir a esse tipo de alimento a partir de um membro da família. “Ás vezes, a mãe compra só para o bebê. Mas logo isso se espalha para toda a família. É inevitável”. Há 24 anos produzindo e comercializando orgânicos, Márcia foi chamada de louca quando vendeu tudo para investir nesse tipo de agricultura em sua fazenda em Brumadinho. “Hoje sou admirada”, diz, rindo.


Em crescimento


Enquanto a Dinamarca quer se tornar o primeiro país a ter uma produção agrícola 100% orgânica e vai investir, só neste ano, 53 milhões para isso, no Brasil, apenas 22,5% dos municípios contam hoje com esse tipo de agricultura.


A atividade vem crescendo, é verdade, mas ainda é muito incipiente. Em 2013, havia 6.700 unidades de produção orgânica. Hoje, o número chega a 14.449 unidades. Em termos econômicos, a agricultura orgânica movimentou cerca de R$ 2 bilhões em 2014, e a expectativa é que, neste ano, esse número alcance R$ 2,5 bilhões, segundo o Ministério da Agricultura.


fonte:http://www.contraosagrotoxicos.org/


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